quinta-feira, 9 de agosto de 2018
quinta-feira, 2 de agosto de 2018
Matrix: metafísica e ideologia
Por Antônio Novais
Uma das grandes questões debatidas na filosofia é
referente à realidade. O que é a realidade? Foram vários os filósofos que ao
longo da história buscaram responder tal pergunta. Cada qual, de sua maneira,
tentou através de suas investigações filosóficas chegarem a uma resposta para
tão inquietante questão. Para Platão, por exemplo, o mundo no qual vivemos não
passa de ilusão, de sombras da realidade externa a essa na qual vivemos, e o
mundo verdadeiro, o que pode se chamar de "real realidade", está no
"Mundo das Ideias", um mundo em que transcende este reflexo
imperfeito no qual habitam os humanos. Essa ideia é muito bem representada na
Alegoria da Caverna.
O filosofo e sociólogo francês Jean Baudrillard nos
traz uma noção de realidade na qual ele chama de "simulacros e
simulações" – título de sua principal obra. Segundo Baudrillard, a sociedade em que
vivemos – nessa era do capitalismo global – teve sua realidade transformada em
algo simulado. O que sentimos, o que desejamos não é mais o que nosso corpo e
nossa mente pede, mas o que nossa mente é induzida a desejar, as nossas
percepções sobre o mundo que nos cerca são percepções induzidas. Nossa
realidade é uma simulação.
Influenciadas principalmente pelo conceito de simulacros
e simulações, as irmãs Wachowski criaram uma das mais importantes obras cinematográficas:
Matrix. Filme lançado no ano de 1999. Nele vemos o protagonista, chamado de
Neo, que descobre que o mundo em que ele vivia não passava de uma simulação de
computador, a realidade era um mundo pós-apocalíptico tomado por robôs que usam
seres humanos como fonte de energia. E para manterem os humanos presos em suas
cabines para que assim possam usar de sua energia eles criaram aquela simulação
de mundo, na qual nomearam de Matrix.
Do que podemos chamar essa tal Matrix em que os seres
humanos estão aprisionados? De ideologia. A ideologia dominante se coloca em
todos os lugares, de forma tão sútil que chega a passar despercebida pela
maioria. E é esse o intuito, para que aos poucos vamos nos habituando, nos conformando
com o que está ao nosso redor, e sendo induzidos a seguir o jogo dos que
controlam tudo.
Desta forma, podemos conceber Matrix como uma alusão
de uma visão metafísica de mundo ao mesmo tempo em que é uma crítica a
ideologia, para ser mais preciso, a crítica de um sistema que usa a ideologia
como forma de controle das massas, para assim manter seu status quo.
O que é pensar filosoficamente senão escolher a pílula
vermelha?
Zygmunt Bauman: Sozinhos no meio da multidão
O jornal Chronicle of Higher Education publicou recentemente em sua página da internet
(http://chronicle.com) a história de uma adolescente que enviou três mil mensagens de texto
num único mês. Isso significa que ela mandou uma média de cem mensagens por dia, ou cerca
de uma mensagem a cada dez minutos do tempo em que esteve acordada – “manhã, tarde e
noite, dias úteis e fins de semana, tempos de aula, horas de almoçar e fazer dever de casa, de
escovar os dentes”. Assim, a adolescente nunca ficou sozinha por mais de dez minutos; nunca
ficou só consigo mesma, com seus pensamentos, seus sonhos, seus medos e esperanças. A essa
altura, ela deve ter se esquecido de como uma pessoa vive, pensa, faz coisas, ri ou chora na
companhia de si mesma, sem a presença de outros. Melhor dizendo, ela nunca teve a
oportunidade de aprender essa arte. O fato é que somente em sua incapacidade de praticar
essa arte é que ela não está sozinha.
Os aparelhinhos de bolso que enviam e recebem mensagens não são os únicos
instrumentos de que essas e outras jovens necessitam para sobreviver sem dominar a arte de
estar consigo mesma. O professor Jonathan Zimmerman, da New York University, observou
que três entre quatro adolescentes norte-americanos gastam todos os minutos de seu tempo útil
em bate-papos no Facebook ou no MySpace. Eles são, por assim dizer, viciados em fazer e
receber sons eletrônicos ou imagens, diz o professor. As páginas de bate-papo são novas
drogas poderosas em que os adolescentes se viciaram. O leitor sem dúvida já ouviu falar nas
crises de abstinência que acometem as pessoas, jovens ou não, viciadas em outros tipos de
drogas, e por isso talvez seja capaz de mentalizar a angústia desses adolescentes quando um
vírus (os pais, os professores) lhes bloqueia o acesso à internet ou desliga seus celulares.
Nesse nosso mundo sempre desconhecido, imprevisível, que constantemente nos
surpreende, a perspectiva de ficar sozinho pode ser tenebrosa; é possível citar muitas razões
para conceber a solidão como uma situação extremamente incômoda, ameaçadora e
aterrorizante. É tolice, além de injusto, culpar apenas a eletrônica pelo que está acontecendo
com as pessoas que nascem num mundo interligado por conexões a cabo, com fio ou sem fio.
Os aparelhos eletrônicos respondem a uma necessidade que não criaram; o máximo que
fizeram foi torná-la mais aguda e evidente, por colocarem ao alcance de todos, e de modo
sedutor, os meios de satisfazê-la sem exigir qualquer esforço maior que apertar algumas
teclas.
Os inventores e vendedores de walkmans, os primeiros aparelhos portáteis que nos
permitiram “ouvir o mundo” onde quer que estivéssemos e sempre que desejássemos,
prometiam aos clientes: “Você nunca mais estará só!” É óbvio que eles sabiam do que estavam
falando e por que essa mensagem publicitária incentivaria a venda de aparelhos – o que de
fato aconteceu, aos milhões. Sabiam que havia milhares de pessoas nas ruas que se sentiam
solitárias e odiavam essa solidão dolorosa e abominável; pessoas que não só estavam
privadas de companhia, mas que sofriam com essa privação. Em lares cada vez mais vazios
durante o dia, onde o coração e a mesa de jantar da família foram substituídos por aparelhos
de TV presentes em todos os cômodos – “cada indivíduo preso em seu próprio casulo” –, um
número sempre decrescente de pessoas podia contar com o calor revigorante e alentador da
companhia humana; sem companhia, elas não sabiam como preencher as horas e os dias.
A dependência do ruído ininterrupto que vem do walkman aprofundou o vazio deixado
pela companhia perdida. Quanto mais as pessoas permaneciam submersas no vazio, menos
eram capazes de fazer uso dos meios disponíveis antes da era do high-tech, isto é, seus
músculos e sua imaginação, para pular fora do vácuo. O advento da internet permitiu esquecer
ou encobrir o vazio, e, portanto, reduzir seu efeito deletério; pelo menos a dor podia ser
aliviada. Contudo, a companhia que tantas vezes faltava e cuja ausência era cada vez mais
sentida parecia retornar nas telas eletrônicas, substituindo as portas de madeira, numa
reencarnação analógica ou digital, embora sempre virtual: pessoas que tentavam escapar dos
tormentos da solidão descobriram nessa nova forma um importante avanço com referência à
versão cara a cara, face a face, que deixara de existir. Esquecidas ou jamais aprendidas as
habilidades da interação face a face, tudo ou quase tudo que se poderia lamentar como
insuficiências da conexão virtual on-line foi saudado como vantajoso. O que o Facebook, o
MySpace e similares ofereciam foi recebido alegremente como o melhor dos mundos. Pelo
menos foi o que pareceu àqueles que ansiavam desesperadamente por companhia humana, mas
se sentiam pouco à vontade, sem jeito e infelizes quando cercados de gente.
Para começo de conversa, nunca mais precisaremos estar sós. O dia inteiro, sete dias por
semana, basta apertar um botão para fazer aparecer uma companhia do meio de uma coleção
de solitários. Nesse mundo on-line, ninguém jamais fica fora ou distante; todos parecem
constantemente ao alcance de um chamado – e mesmo que alguém, por acaso, esteja dormindo,
há muitos outros a quem enviar mensagens, ou a quem alcançar de imediato pelo Twitter, para
que a ausência temporária nem seja notada. Em segundo lugar, é possível fazer “contato” com
outras pessoas sem necessariamente iniciar uma conversa perigosa e indesejável. O “contato”
pode ser desfeito ao primeiro sinal de que o diálogo se encaminha na direção indesejada: sem
riscos, sem necessidade de achar motivos, de pedir desculpas ou mentir; basta um toque leve,
quase diáfano, numa tecla, um toque totalmente indolor e livre de riscos.
Também não há necessidade de sentir medo de estar sozinho, da ameaça de expor-se à
exigência de outros, a um pedido de sacrifício ou de comprometimento, de ter de fazer alguma
coisa que você não quer só porque outros querem que você faça. Essa certeza tranquilizadora
pode ser mantida e usufruída mesmo quando você está sentado numa sala apinhada de gente,
nos corredores de um centro comercial lotado, ou passeando na rua, no meio de um grande
grupo de amigos ou de transeuntes; você sempre pode “se ausentar espiritualmente” e “ficar
só”, ou pode comunicar aos que o rodeiam que deseja ficar fora de contato. Você pode escapar
da multidão mantendo os dedos ocupados para digitar uma mensagem a ser enviada a alguém
que está fisicamente ausente; por isso, nesse momento, não lhe são feitas exigências, nada lhe
ocupa a atenção, a não ser o “contato”, ou passar os olhos numa mensagem que acabaram de
lhe enviar.
Com esses aparelhinhos na mão, você pode inclusive se afastar de uma situação de
pânico, se quiser, instantaneamente – no momento exato em que a companhia se acerca demais
de você e parece opressiva para seu gosto. Você não tem de jurar fidelidade até que a morte os
separe; por outro lado, pode esperar que todo mundo esteja “acessível” quando você precisar,
sem ter de suportar as consequências desagradáveis de estar sempre disponível para os
outros.
Isso será o paraíso na Terra? Nosso sonho enfim realizado? Será esta a solução definitiva
para a pungente ambivalência da interação humana, a um só tempo confortadora e estimulante,
mas incômoda e cheia de ciladas? As opiniões se dividem a esse respeito. O que parece estar
fora de dúvida é que pagamos um preço por tudo isso – um preço que pode se revelar alto
demais. Se você está sempre “conectado”, pode ser que nunca esteja verdadeira e
completamente só. Se você nunca está só, então (para citar o professor Zimmerman mais uma
vez) “tem menos chance de ler um livro por prazer, de desenhar um retrato, de contemplar a
paisagem pela janela e imaginar outros mundos diferentes do seu. É menos provável que você
estabeleça comunicação com pessoas reais em seu meio imediato. Quem vai querer conversar
com parentes quando os amigos estão a um clique do teclado?” (E esses amigos são
incontáveis, de uma diversidade fascinante; há cerca de quinhentos ou mais “amigos” no
Facebook.)
Fugindo da solidão, você deixa escapar a chance da solitude: dessa sublime condição na
qual a pessoa pode “juntar pensamentos”, ponderar, refletir sobre eles, criar – e, assim, dar
sentido e substância à comunicação. Mas quem nunca saboreou o gosto da solitude talvez
nunca venha a saber o que deixou escapar, jogou fora e perdeu.
Retirado do livro: 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, capítulo 2.
quarta-feira, 1 de agosto de 2018
Bertrand Russel sobre Friedrich Nietzsche
NIETZSCHE (1844-1900) considerava-se, com razão, sucessor de
Schopenhauer, ao qual, no entanto, é superior sob vários aspectos, principalmente
quanto ao que diz respeito à solidez e coerência de sua doutrina. A moral oriental
da renúncia, de Schopenhauer, não parece concordar com a sua metafísica da
onipotência da vontade; em Nietzsche, a vontade tem primazia tanto ética como
metafísica. Nietzsche, embora professor, era um filósofo mais literário que
acadêmico. Não inventou novas teorias técnicas na ontologia ou na
epistemologia; sua importância reside principalmente na ética e, em segundo
lugar, como crítico histórico de visão penetrante. Limitar-me-ei quase
inteiramente à sua ética e à sua crítica da religião, já que foi este aspecto de seus
escritos que o tornou influente.
Sua vida foi simples. Seu pai era pastor protestante e sua educação foi muito
piedosa. Destacou-se brilhantemente na universidade como estudioso dos
clássicos e aluno de filologia, de tal modo que, em 1869, antes de receber seu
diploma, lhe foi oferecido um lugar de professor em Basel, que aceitou. Sua
saúde nunca foi boa e, depois de vários períodos de licença, foi obrigado,
finalmente, em 1879, a abandonar o magistério. Depois disso, viveu na Suíça e na
Itália; em 1888, enlouqueceu, permanecendo assim até sua morte. Tinha uma
admiração apaixonada por Wagner, mas se indispôs com ele, devido, ao que
alegou, ao Parsifal, que ele considerava demasiado cristão e cheio demais de
renúncia. Depois da desavença, criticou Wagner violentamente, chegando ao
ponto de acusá-lo de judeu. Seu critério geral continuou sendo, não obstante,
muito semelhante ao de Wagner em o Anel; o super-homem de Nietzsche é
muito semelhante a Siegfried, com a diferença de que sabe grego. Isto pode
parecer estranho, mas a culpa não é minha.
Nietzsche não foi, conscientemente, um romântico; com efeito, critica,
amiúde, os românticos. Conscientemente, sua atitude era helênica, mas sem o
componente órfico. Admirava os pré-socráticos, com exceção de Pitágoras. Tem
estreita afinidade com Heráclito. O homem magnânimo de Aristóteles
assemelha-se muito ao que Nietzsche chama o “homem nobre”, mas, em geral,
considera os filósofos gregos posteriores a Sócrates inferiores aos seus
predecessores. Não pode perdoar Sócrates pela sua origem humilde; chama-o
roturier e acusa-o de corromper a nobre juventude ateniense com a sua
tendência moral democrática. Platão, principalmente, é condenado devido ao seu
gosto pela edificação moral. Não obstante, Nietzsche não deseja condená-lo de
todo e sugere, para escusá-lo, que talvez tenha sido insincero e que só pregava a
virtude como um meio para que as classes inferiores se mantivessem em ordem.
Fala dele, em certa ocasião, como « um grande Cagliostro”. Gosta de Demócrito
e de Epicuro, mas seu afeto pelo último parece um tanto ilógico, a menos que
seja interpretado realmente como uma admiração por Lucrécio.
Como era de esperar, tem péssima opinião de Kant, a quem chama “fanático
moral à la Rousseau”.
Apesar da crítica que Nietzsche faz aos românticos, sua atitude deve muito a
eles; é a do anarquismo aristocrático, como a de By ron, e a gente não se
surpreende de o ver admirando By ron. Procura combinar duas séries de valores
que não se harmonizam facilmente: de um lado, gosta da rudez, da guerra e do
orgulho aristocrático; de outro; ama a filosofia, a literatura e as artes,
principalmente a música. Historicamente, estes valores coexistiram na
Renascença; o Papa Júlio II, lutando por Bolonha e empregando Miguel Ângelo,
podia ser tomado como a espécie de homem que Nietzsche desejaria ver à
frente do governo dos povos. É natural comparar-se Nietzsche a Maquiavel
apesar das importantes diferenças existentes entre os dois. Quanto às diferenças:
Maquiavel foi um homem de negócios, cujas opiniões haviam sido formadas em
estreito contato com os assuntos públicos e estavam em harmonia com a sua
época; não era pedante nem sistemático e sua filosofia da política mal forma um
todo coerente. Nietzsche, pelo contrário, era um professor, um homem
essencialmente livresco e um filósofo em oposição consciente ao que lhe parecia
ser a tendência política e ética de seu tempo. As semelhanças são, no entanto,
mais profundas. A filosofia política de Nietzsche é análoga à do Príncipe (não à
dos Discursos), embora seja elaborada e aplicada a um campo mais amplo.
Tanto Nietzsche como Maquiavel têm uma moral cuja finalidade é o poder e que
é, deliberadamente, anticristã, embora Nietzsche seja mais franco a este
respeito. O que César Bórgia foi para Maquiavel, Napoleão foi para Nietzsche:
um grande homem derrotado por minúsculos adversários.
A crítica nietzschina das religiões e das filosofias é dominada inteiramente por
motivos éticos. Ele admira certas qualidades que julga (talvez com razão) ser
apenas possíveis para uma minoria aristocrática; a maioria, na sua opinião, devia
ser somente um meio para a perfeição dos poucos, e não devia ser considerada
como tendo qualquer direito independente à felicidade ou ao bem-estar. Alude
habitualmente aos seres humanos como os “estropiados e remendados” e não vê
nenhuma objeção aos seus sofrimentos se estes forem necessários para a
produção de um grande homem. Assim, toda a importância do período que vai
de 1789 a 1815, se resume em Napoleão: “A Revolução tornou Napoleão
possível: essa é a sua justificação. Devíamos desejar o colapso anárquico de toda
a nossa civilização se tal recompensa fosse o seu resultado. Napoleão tornou
possível o nacionalismo: essa é a escusa deste último”. Quase todas as mais altas
esperanças deste século, diz ele, se devem a Napoleão.
Gosta de expressar-se por meio de paradoxos, para escandalizar o leitor
comum. Consegue-o mediante o emprego das palavras “bem” e “mal” com seus
significados ordinários, dizendo, depois, que prefere o “mal” ao “bem”. Seu livro
Além do Bem e do Mal tem realmente por objetivo mudar a opinião do leitor
quanto ao que é bom e o que é mal, mas se dedica, salvo em certos momentos, a
elogiar o que é “mau” e a desdenhar o que é “bom”. Diz, por exemplo, que é um
erro considerar como um dever aspirar à vitória do bem e ao aniquilamento do
mal; este critério é inglês e típico “desse cabeça dura, John Stuart Mill”, por
quem sente um desdém particularmente virulento. Diz dele:
“Detesto a vulgaridade do homem quando diz: “O que é lícito para um
homem é lícito para outro”. Tais princípios estabeleceriam de bom grado
todas as relações humanas sob a base de serviços mútuos, de modo que cada
ação pareceria como que o pagamento de alguma coisa que nos tivessem feito.
Esta hipótese é ignóbil no mais alto grau: dá por assentado que há alguma espécie
de equivalência de valor entre minhas ações e as tuas”.
A verdadeira virtude, como coisa oposta à convencional, não é para todos,
mas devia permanecer como a característica de uma minoria aristocrática. Não
é proveitosa nem prudente; isola dos outros homens e seu possuidor; é hostil à
ordem e prejudica os inferiores. É necessário que os homens mais elevados
façam guerra contra as massas e resistam às tendências democráticas da época,
pois, em todas as direções, as pessoas medíocres estão dando as mãos umas às
outras para se tornarem senhores do mundo. “Tudo o que mima, o que abranda,
o que traz o “povo” ou a “mulher” para o primeiro plano, age em favor do
sufrágio universal — isto é, do domínio dos homens “inferiores”. O sedutor foi
Rousseau, que tornou a mulher interessante; depois vieram, Harriet Beecher
Stowe e os escravos; depois os socialistas, com a sua defesa dos operários e dos
pobres. Todos eles devem ser combatidos.
A moral de Nietzsche não é de indulgência consigo mesmo em nenhum
sentido comum; acredita na disciplina espartana e na capacidade de suportar a
dor, como também infringi-la, para fins importantes. Admira acima de tudo a
força de vontade. “Provo o poder de uma vontade — diz ele — segundo a
quantidade de resistência que pode oferecer e de tortura que pode suportar, e
pela maneira como sabe transformar isso em benefício próprio; não indico o mal
e a dor da existência com o dedo da reprovação, mas antes alimento a esperança
de que um dia a vida possa chegar a ser pior e mais cheia de sofrimento do que
tem sido”.
Considera a compaixão como uma fraqueza que é preciso combater. “O
objetivo é alcançar essa enorme energia de grandeza que pode modelar o
homem do futuro por meio da disciplina e também do aniquilamento de milhões
de esfarrapados e que pode, não obstante, evitar de cair na ruína ante o
sofrimento criado por isso, de que não se viu nunca, antes, coisa semelhante”.
Profetizava, com certo júbilo, uma era de grandes guerras; a gente fica a pensar
se teria sido feliz se houvesse vivido o bastante para ver a realização de sua
profecia.
No entanto, não é um adorador do Estado; longe disso. É um individualista
apaixonado, um crente no herói. A miséria de toda uma nação, diz ele, é menos
importante do que o sofrimento de um grande indivíduo: “Os infortúnios de toda
essa gente pequena não constituem, reunidos, uma soma total, salvo nos
sentimentos dos homens poderosos”.
Nietzsche não é um nacionalista e não mostra excessiva admiração pela
Alemanha. Deseja uma raça dirigente internacional, que reúna os senhores do
mundo: “uma nova e vasta aristocrata, baseada na mais severa autodisciplina,
em que a vontade dos homens de poder filosófico e dos artistas-tiranos seja
estampada durante milhares de anos”.
Tampouco é decididamente antissemita, embora ache que a Alemanha
contém tantos judeus quanto lhe é possível assimilar, não devendo permitir novo
influxo de judeus. Não lhe agrada o Novo Testamento, mas sim o Antigo, de que
fala em termos altamente elogiosos. Fazendo-se justiça a Nietzsche, deve-se
ressaltar que muitos progressos modernos, que tem certa relação com seu
critério ético geral, são contrários a suas opiniões claramente expressas.
Duas aplicações da sua ética merecem referência: primeiro, seu desprezo
pelas mulheres; segundo, sua crítica do Cristianismo.
Não se cansa jamais de investir contra as mulheres. Em seu livro pseudo
profético, Assim Falava Zarathustra, diz que as mulheres não são, ainda, capazes
de amizade; são ainda gatos, ou pássaros ou, quando muito vacas. « Os homens
devem ser adestrados para a guerra e as mulheres para a recreação dos
guerreiros. O resto é tolice. A recreação do guerreiro deve ser de uma forma
peculiar, se é que elevemos confiar em seu enfático aforismo sobre o assunto:
“Vais encontrar uma mulher? Não esqueças o chicote”?
Nem sempre é tão feroz, embora sempre seja igualmente desdenhoso. Em A
Vontade de Poder, diz: “Agrada-nos a mulher por ser talvez a mais saborosa,
delicada e etérea das criaturas humanas. Que prazer para nós encontrar criaturas
que só tem na cabeça bailes, tolices e atavios! Elas têm sido sempre a delícia de
toda alma varonil tensa e profunda”. No entanto, mesmo estas graças só são
encontradas nas mulheres que são mantidas na linha por homens varonis; logo
que conseguem qualquer independência, tornam-se intoleráveis. “A mulher tem
muito de que se envergonhar; na mulher, há muito pedantismo, superficialidade,
suficiência, presunções ridículas, desregramentos, e indiscrição oculta … coisas
que foram, até agora, refreadas e dominadas por medo do homem”. Assim o diz
em Além do Bem e do Mal, onde acrescenta que devíamos considerar as
mulheres como uma propriedade, como os orientais. Todo o seu juízo sobre as
mulheres é apresentado como uma verdade axiomática; não são opiniões
apoiadas em provas históricas ou em sua própria experiência, que, quanto ao que
se referia a mulheres, quase que se limitava à sua irmã.
A objeção de Nietzsche contra o Cristianismo é que este teve como resultado a
aceitação do que ele chama “moral de escravo”. É curioso observar o contraste
entre seus argumentos e os dos philosophes franceses anteriores à Revolução.
Estes afirmavam que os dogmas cristãos não eram verdadeiros; que o
Cristianismo ensina a submissão ao que julga ser a vontade de Deus, enquanto
que os seres humanos que se respeitem não devem inclinar-se ante nenhum
Poder mais alto — e que as Igrejas cristãs se tornaram aliadas dos tiranos e
ajudam os inimigos da democracia a negar a liberdade e a continuar a oprimir os
pobres. Nietzsche não se interessa pela verdade metafísica do Cristianismo ou de
qualquer outra religião; convencido de que nenhuma religião é realmente
verdadeira, julga todas as religiões exclusivamente pelos seus efeitos sociais.
Concorda com os filósofos quanto ao que se refere à submissão à suposta vontade
de Deus, mas ele não a substituiria pela vontade dos “artistas-tiranos” terrenos. A
submissão é licita, salvo para os super-homens, mas não a submissão ao Deus
cristão. Quanto ao fato de as Igrejas cristãs « serem aliadas dos tiranos e inimigas
da democracia» , isso, diz ele, constitui o verdadeiro reverso da verdade. A
Revolução Francesa e o socialismo são, segundo ele, essencialmente idênticos,
quanto ao espírito, ao Cristianismo; a tudo isso se opõe, e pela mesma razão: que
ele não tratará todos os homens como iguais sob nenhum aspecto.
O Budismo e o Cristianismo, diz ele, são ambas duas religiões “niilistas”, no
sentido de que negam qualquer diferença última de valor entre um homem e
outro, mas o Budismo é a menos refutável das duas. O Cristianismo é
degenerador, cheio de elementos excrementícios e decadentes; sua força
propulsora é a rebelião dos esfarrapados. Esta revolta começou com os judeus e
foi trazida ao Cristianismo pelos “santos epiléticos” como São Paulo, que não
tinham honestidade. “O Novo Testamento é o evangelho de uma classe de
homem completamente ignóbil”. O Cristianismo é a mentira mais fatal e
sedutora que já existiu. Nenhum homem notável se pareceu jamais ao ideal
cristão; considere-se, por exemplo, os heróis da Vidas de Plutarco. O Cristianismo
deve ser condenado por negar o valor do “orgulho, o sentimento das distâncias, a
grande responsabilidade, o entusiasmo exuberante, os instintos da guerra e da
conquista, a deificação da paixão, a vingança, a cólera, a voluptuosidade, a
aventura, o conhecimento”. Todas estas coisas são boas, e todas elas são
consideradas más pelo Cristianismo — diz Nietzsche.
O Cristianismo, afirma ele, propõe-se a domesticar o coração do homem,
mas isto é um erro. Um animal selvagem tem certo esplendor, que perde quando
é domesticado. Os criminosos de Dostoiewsky eram melhores do que ele, porque
tinham mais respeito por si mesmos. O arrependimento e a redenção causam
asco a Nietzsche sendo por ele qualificados como “folie circulaire”. É difícil
livrar-nos deste modo de pensar com respeito à conduta humana: “somos
herdeiros da vissecção da consciência e da autocrucificação de dois mil anos”.
Há uma passagem muito eloquente, acerca de Pascal, que deve ser citada, pois
que nos mostra da maneira mais perfeita a objeção de Nietzsche ao Cristianismo.
“Que é que combatemos no Cristianismo? Sua aspiração a destruir os fortes, a
quebrantar lhes o espírito, e a explorar os seus momentos de cansaço e fraqueza,
a converter a sua orgulhosa segurança em preocupação e ansiedade; porque sabe
envenenar os instintos mais nobres e contaminá-los com a enfermidade, até que
seu vigor, sua vontade de poder, se voltem para dentro, contra si mesmos — até
que os fortes pereçam pelo excessivo desprezo de si mesmos e sua própria
imolação: essa horrenda maneira de perecer, da qual Pascal é o exemplo mais
famoso”.
Em lugar do santo cristão, Nietzsche deseja ver o que ele chama o homem
“nobre”, não, de modo algum, como um tipo universal, mas como aristocrata
governante. O homem “nobre” será capaz de crueldade e, em certas ocasiões,
do que vulgarmente se considera como crime; só reconhecerá deveres para com
os seus iguais. Protegerá artistas, poetas e todos os que chegarem a ser mestres
de alguma arte, mas o fará como membro de uma ordem mais alta do que a dos
que só saibam fazer alguma coisa. Do exemplo dos guerreiros, aprenderá a
associar a morte aos interesses pelos quais luta; a sacrificar o número e a levar
sua causa suficientemente a sério a ponto de não poupar homens; a praticar uma
disciplina inexorável e a permitir a si mesmo a violência e a astúcia na guerra.
Compreenderá o papel desempenhado pela crueldade na perfeição aristocrática:
“quase tudo que chamamos “alta cultura” está baseado na espiritualização e
intensificação da crueldade. O homem “nobre” é, essencialmente, a encarnação
da vontade de poder.
Que devemos pensar das doutrinas de Nietzsche? Até que ponto são
verdadeiras? São, de algum modo, úteis? Há nelas algo objetivo, ou são simples
sonhos de poder de um inválido?
É inegável que Nietzsche teve grande influência, não entre filósofos técnicos,
mas entre pessoas de cultura literária e artística. Deve-se também reconhecer
que suas profecias quanto ao futuro provaram, até agora, estar mais próximas da
verdade do que as dos liberais e socialistas. Se ele é um mero sintoma de
enfermidade, tal doença deve estar muito disseminada no mundo moderno.
Não obstante, há nele muita coisa que tem de ser posta de lado como
simplesmente megalomaníaca. Falando de Spinoza, diz: “Quanta timidez e
vulnerabilidade revela esta máscara de recluso enfermiço!” Exatamente o
mesmo poderia dizer-se dele, com menos repugnância, já que não hesitou em
dizê-lo de Spinoza. É óbvio que, em seus sonhos, é um guerreiro, não um
professor; todos os homens que admira são militares. Sua opinião das mulheres,
como a de todos os homens, é uma objetivação de sua própria emoção com
respeito a elas, que é claramente um sentimento de temor. “Não esqueças teu
chicote” — mas, em cada dez mulheres, nove teriam arrebatado o chicote, e ele
o sabia, de modo que se conservava afastado delas, curando sua vaidade ferida
com observações nada amáveis.
Condena o amor cristão porque o considera um produto do temor: receio que
meu vizinho me faça mal e, por isso, lhe asseguro que o amo. Se eu fosse mais
forte e mais ousado, demonstraria abertamente o desprezo que, certamente,
sinto. Não ocorre a Nietzsche a possibilidade de que um homem sinta realmente
um amor universal, e isto, sem dúvida, porque ele sente um ódio e um temor
quase universal, que procura disfarçar com altiva indiferença. Seu homem
“nobre” — que é ele próprio em seus devaneios — é um ser totalmente destituído
de simpatia, implacável, astuto, cruel, preocupado só com o seu próprio poder. O
Rei Lear, à beira da loucura, diz:
Farei tais coisas –
Não sei ainda quais – mas elas serão
O terror da terra.
Esta é a filosofia de Nietzsche, em poucas palavras.
Jamais ocorreu a Nietzsche que a ânsia de poder, com que adorna o seu
super-homem, é em si um produto do medo. Os que não temem os seus vizinhos
não veem a necessidade de tiranizá-los. Os homens que venceram o medo não
têm a qualidade frenética do “artista-tirano” de Nietzsche, Nero, que procura
gozar a música e os massacres, enquanto o seu coração está cheio do terror da
inevitável revolução em palácio. Não negarei que, em parte como resultado de
seu ensinamento, o mundo real se tornou muito semelhante ao seu pesadelo, mas
isto não o torna, de modo algum, menos horrível.
Deve-se admitir que há um certo tipo de moral cristã a que se pode aplicar a
severa crítica de Nietzsche. Pascal e Dostoiewsky — seus próprios exemplos —
tem algo de abjeto em sua virtude. Pascal sacrificou ao seu Deus o seu
magnífico talento matemático, atribuindo-lhe, assim, uma barbaridade que era
uma ampliação cósmica das mórbidas torturas mentais de Pascal. Dostoiewsky
não sabia o que fazer com o orgulho; pecaria para arrepender-se e gozar da
volúpia da confissão. Não discutirei a questão de saber até que ponto se pode
atribuir com justiça tais aberrações ao Cristianismo, mas admitirei que
concorrendo com Nietzsche ao considerar digna de desprezo a prostração de
Dostoiewsky. Um certo aprumo e altivez, e até certa afirmação de si mesmo,
são, tenho de admitir, elementos do caráter melhor; nenhuma virtude que tenha
suas raízes no medo é digna de ser muito admirada.
Há duas espécies de santos: o santo por natureza, e o santo por medo. O santo
por natureza sente um amor espontâneo pela humanidade; faz o bem porque isso
o torna feliz. O santo por medo, como o homem que só se abstém de roubar por
receio da polícia, seria um perverso, se não se visse refreado pelo pensamento do
fogo do inferno e pela vingança do próximo. Nietzsche só pode imaginar esta
espécie de santo; sente-se tão cheio de temor e de ódio que o amor espontâneo à
humanidade lhe parece impossível. Jamais concebeu um homem que, com todo
o destemor e o inflexível orgulho do super-homem, não inflija, apesar disso,
sofrimento algum, por não ter desejo de o fazer. Suporá alguém que Lincoln
agisse como agiu por medo do inferno? No entanto, para Nietzsche, Lincoln é
abjeto, e Napoleão magnífico.
Resta considerar o principal problema ético suscitado por Nietzsche, isto é:
deveria a nossa ética ser aristocrática, ou deveria, em certo sentido, tratar todos
os homens por igual? Esta é uma questão que, como acabo de expor, não tem um
sentido muito claro e, como é natural, o primeiro passo é procurar torná-la mais
precisa.
Devemos, em primeiro lugar, distinguir uma ética aristocrática de uma teoria
política aristocrática. Um crente no princípio de Bentham, da maior felicidade
para o maior número, tem uma ética democrática, mas poderá pensar que se
obtém melhor a felicidade geral com uma forma de governo aristocrático. Esta
não é a posição de Nietzsche. Afirma ele que a felicidade das pessoas comuns
não faz parte do bem per se. Tudo o que é bom ou mau existe apenas nos poucos
superiores; o que acontece com o resto não tem importância.
A segunda questão é: Como definir os poucos superiores? Na prática, tem sido,
usualmente, uma raça conquistadora ou uma aristocracia hereditária — e as
aristocracias tem sido, pelo menos na teoria, composta de descendentes de raças
conquistadoras. Creio que Nietzsche aceitaria esta definição. “Nenhuma moral é
possível sem um bom nascimento”, diz-nos ele. E acrescenta que a casta nobre é
sempre, a princípio, bárbara, mas que toda a elevação do Homem se deve à
sociedade aristocrática.
Não está claro se Nietzsche considera congênita a superioridade do aristocrata
ou devido à educação ou ao meio. Se este último é o caso, torna-se difícil
defender a exclusão de outros das vantagens para as quais, ex hypothesi, estão
igualmente qualificados. Presumirei, pois, que ele considera as aristocracias
conquistadoras e seus descendentes como biologicamente superiores a seus
súditos, como os homens são superiores aos animais domésticos, embora em
grau menor.
Que é que devemos entender por “biologicamente superior”? Devemos
entender, quando estivermos interpretando Nietzsche, que os indivíduos da raça
superior e seus descendentes tem mais probabilidade de ser “nobres” no sentido
nietzschiano: terão mais força de vontade, mais coragem, mais ânsia de poder,
menos simpatia, menos medo e menos bondade.
Podemos, agora, expor a ética de Nietzsche. Creio que os que se seguem é
uma análise imparcial da mesma.
Os vencedores na guerra e seus descendentes são, em geral biologicamente
superiores aos vencidos. É, pois, desejável que mantenham o poder e dirijam os
negócios exclusivamente em seu próprio interesse.
Temos ainda de considerar, aqui, a palavra “desejável”. Que é “desejável” na
filosofia de Nietzsche? Do mundo de vista de um estranho, o que Nietzsche
chama “desejável” é o que Nietzsche deseja. Com esta interpretação, a doutrina
de Nietzsche poderia ser exposta, de maneira mais simples e honesta, numa
frase: “Quem me dera ter vivido na Atenas de Péricles ou na Florença dos
Médicis!” Mas isto não é uma filosofia; é um fato biográfico referente a
determinado indivíduo. A palavra “desejável” não é sinônimo de “desejado por
mim”; tem certo direito, embora impreciso, de jurisdição universal. Um teísta
pode dizer que o desejável é aquilo que Deus deseja, mas Nietzsche não pode
dizer tal coisa. Poderia dizer que sabe o que é bom por uma intuição ética, mas
não diria isto porque tais palavras soam de um modo demasiado kantiano. O que
pode dizer, como uma expansão da palavra “desejável”, é isto: “Se os homens
lerem minhas palavras, uma certa porcentagem deles compartilhará de meus
desejos quanto ao que se refere à organização da sociedade, esses homens,
inspirados pela energia e determinação que minha filosofia lhes dará, podem
preservar e restaurar a aristocracia, com eles próprios como aristocratas ou
(como eu) como bajuladores da aristocracia. Deste modo, conseguirão uma vida
mais plena do que a que poderão ter como servidores do povo”.
Há um outro elemento em Nietzsche, estreitamente afim à objeção feita pelos
“individualistas inflexíveis” contra os sindicatos. Numa luta de todos contra todos,
é provável que o vencedor possua certas qualidades que Nietzsche admira, tais
como coragem, espírito de iniciativa e força de vontade. Mas se os homens que
não possuem estas qualidades aristocráticas (que são a imensa maioria) se
unirem, podem vencer, apesar de sua inferioridade individual. Na luta da canaille
coletiva contra os aristocratas, o Cristianismo constitui a frente ideológica, como
a Revolução Francesa foi a frente combatente. Devemos, por conseguinte, opornos
a qualquer espécie de união entre os individualmente fracos, por receio de
que seu poder combinado supere o dos individualmente fortes; por outro lado,
devemos promover a união entre os elementos vigorosos viris da população. O
primeiro passo para a criação de tal união é pregar-se a filosofia de Nietzsche.
Ver-se-á que não é fácil manter a distinção entre a ética e a política.
Suponha-se que desejamos — como eu certamente desejo — encontrar
argumentos contra a moral e a política de Nietzsche. Que argumentos poderemos
achar?
Há argumentos práticos de peso, que mostram que o intento de assegurar os
fins a que ele se propunha produzem, de fato, algo inteiramente diferente. As
aristocracias de nascimento estão, hoje em dia, desacreditadas; a única forma
praticável de aristocracia é uma organização como o partido fascista ou o nazista.
Tal organização suscita oposição, e é provável que seja derrotada na guerra; mas,
se não for derrotada, converte-se, dentro de pouco tempo, num Estado policial,
onde os governadores vivem no terror de ser assassinados e os heróis se
encontram em campos de concentração. Numa tal comunidade, a fé e a honra
são minadas pela delação, e a pressuposta aristocracia de super-homens se
degenera num bando de trêmulos poltrões.
Estes são, no entanto, argumentos para a nossa época, não teriam sido
defendidos em épocas passadas, quando a aristocracia não era posta em dúvida.
O governo egípcio foi conduzido, durante vários milênios, de acordo com os
princípios nietzschianos. Os governos de quase todos os grandes Estados foram
aristocráticos até as revoluções francesa e americana. Temos, portanto, de
perguntar a nós mesmos se há alguma boa razão para se preferir a democracia a
uma forma de governo que tem uma história tão longa e triunfante — ou, antes,
já que nos ocupamos de filosofia e não de política, se há razões objetivas para se
rejeitar a ética em que Nietzsche baseia a aristocracia.
A questão ética, ao contrário da política, é de simpatia. A simpatia, no sentido
de nos tornarmos infelizes com o sofrimento dos outros, é, até certo ponto, natural
às criaturas humanas; as crianças pequenas mostram-se preocupadas quando
ouvem chorar outras crianças. Mas o desenvolvimento deste sentimento é muito
diferente em pessoas diversas. Alguns sentem prazer em infligir torturas; outros,
como Buda, acham que não podem ser completamente felizes enquanto alguma
coisa viva estiver sofrendo. A maioria das pessoas divide emocionalmente a
humanidade em amigos e inimigos, sentindo simpatia pelos primeiros, mas não
pelos segundos. Uma ética como a do Cristianismo ou o Budismo tem sua base
emotiva na simpatia universal; a de Nietzsche, numa ausência completa de
simpatia.
(Prega, frequentemente, contra a simpatia e, a este respeito, sente-se que não
tem dificuldade alguma em seguir seus próprios preceitos). A questão é: se Buda
e Nietzsche se defrontassem, poderia um deles apresentar algum argumento que
impressionasse o ouvinte imparcial? Não estou pensando em argumentos
políticos. Podemos imaginá-los comparecendo diante do Todo-poderoso, como
no primeiro capítulo do Livro de Jó, e a dar conselhos sobre a espécie de mundo
que Ele deveria criar. Que poderia cada um deles dizer?
Buda iniciaria sua exposição falando dos leprosos, proscritos e miseráveis; do
pobre, labutando com os membros doloridos e mal mantendo-se vivo com a
alimentação escassa; os feridos nas batalhas, morrendo em lenta agonia; os
órfãos, os maltratados por guardiães cruéis — e mesmo dos mais afortunados,
perseguidos pelo pensamento do fracasso e da morte. Diante de toda esta carga
de sofrimento, diria, era preciso que se encontrasse uma maneira de salvação —
e que a salvação só pode vir pelo amor.
Nietzsche, a quem só o Onipotente poderia impedir que interrompesse,
irromperia, quando chegasse a sua vez: “Por Deus, homem, devias aprender a
ter mais fibra. Por que andar a choramingar porque as pessoas vulgares sofrem?
Ou, mesmo, porque os grandes homens sofrem? As pessoas vulgares sofrem
vulgarmente, os grandes homens sofrem grandemente, e os grandes sofrimentos
não devem ser lamentados, pois são nobres. Teu ideal é puramente negativo, a
ausência de sofrimento, coisa que pode ser assegurada com a não – existência.
Eu, pelo contrário, tenho ideais positivos: admiro Alcibíades, Frederico o Grande,
Napoleão. Em benefício destes homens, qualquer sofrimento vale a pena. Apelo
para Vós, Senhor, como o maior dos artistas criadores: não permitais que os
Vossos impulsos artísticos se curvem ante o balbuciar atemorizado deste infeliz
psicopata”.
Buda, que, nas cortes celestiais, aprendeu toda a história posterior à sua morte,
e que dominou a ciência, deleitando-se com o conhecimento e sentindo tristeza
ante o uso a que os homens o destinaram, replica, com calma urbanidade: “O
senhor está enganado, Prof. Nietzsche, ao pensar que o meu ideal é puramente
negativo. Na verdade, inclui um elemento negativo — a ausência de sofrimento;
mas, além disso, contém tanto de positivo quanto se possa encontrar em sua
doutrina. Embora não sinta admiração especial por Alcibíades e Napoleão, eu
também tenho os meus heróis: o meu sucessor Jesus, por haver dito aos homens
que amassem os seus inimigos; os homens que descobriram a maneira de se
dominar as forças da natureza e assegurar alimento com menos trabalho; os
médicos que mostraram a maneira de se diminuir as enfermidades; os poetas, os
artistas e os músicos que captaram vislumbres da Beatitude Divina. O amor, o
conhecimento e o deleite da beleza não são negações; são suficientes para encher
as vidas dos maiores homens que já existiram”.
“De qualquer modo — responde Nietzsche — vosso mundo seria insípido.
Teríes de estudar Heráclito, cujas obras se conservam completas na biblioteca
celestial. Vosso amor é compaixão, produzido pela dor; vossa verdade, se é que
sois honestos, é desagradável, e só pode ser conhecida através do sofrimento;
quanto à beleza, que existe de mais belo do que o tigre, que deve seu esplendor à
sua ferocidade? Não, se o Senhor se decidisse pelo vosso mundo, receio que
morreríamos todos de tédio”.
« O senhor poderia morrer de tédio — responde Buda — porque ama a dor e
o seu amor à vida é uma impostura. Mas aqueles que realmente amam a vida,
seriam felizes como ninguém pode ser feliz no mundo tal como ele é”.
De minha parte, concordo com Buda tal como o imaginei. Mas não sei de que
maneira provar que ele tem razão, por meio de argumentos como os que podem
ser usados numa questão matemática ou científica. Nietzsche não me agrada
porque aprecia a contemplação da dor, porque erige o desprezo em dever,
porque os homens a quem ele mais admira são conquistadores, cuja glória se
baseia na habilidade em fazer com que os homens morram. Mas creio que o
argumento final contra a sua filosofia, como contra qualquer ética desagradável,
mas intimamente coerente, reside não no apelo aos fatos, mas num apelo às
emoções. Nietzsche despreza o amor universal; eu o considero a força motriz de
tudo o que desejo com respeito ao mundo. Seus adeptos tiveram sua vez no
mundo, mas podemos esperar que esta chegue rapidamente ao fim.
Retirado do livro: História da Filosofia Ocidental, capítulo XXV.
Slavoj Žižek: "Somos todos basicamente malvados, egoístas, repugnantes"
Somos todos basicamente maus, egoístas, nojentos. Tome a tortura, por exemplo. Eu sou realista. Se eu tivesse uma filha e alguém a sequestrasse, e eu encontrasse um amigo do sequestrador, não posso dizer que não torturaria aquele cara. Eu me tornei mais agressivo com o tempo. Alguns dizem que eu sou mais de direita, o que eu absolutamente não sou. Sobre a crise dos refugiados, devemos deixar de lado os condescendentes: “Eles são pessoas calorosas.” Não, há assassinos entre eles da mesma forma que existem entre nós. A esquerda liberal proíbe que se escreva qualquer coisa ruim sobre os refugiados, o que resulta no monopólio dos direitos anti-imigrantes.
Eu não sou um bom pai. Há algo de ridículo em afirmar minha dignidade a qual resisto automaticamente. Meu filho adolescente se identifica com esse enfraquecimento da minha própria autoridade. Quando ele tinha 14 anos, eu estava bravo com ele e usei uma expressão vulgar em esloveno: “Deixe o cachorro foder sua mãe.” Ele respondeu: “Isso já aconteceu há 15 anos. É assim que nasci."
Meus amigos me chamam de Fidel. Não por causa da política, mas porque falo demais. Eu visitei Cuba uma vez e na TV, Fidel Castro foi mostrado entrando em uma reunião dizendo: "Camaradas, cinco minutos para fazer algumas observações." Eu fui dormir, acordei cinco horas depois, e ele ainda estava falando.
Eu odeio arrogância politicamente correta. Com amigos negros, em contraste com homens brancos politicamente corretos, estabeleço contato real. Como? Através de histórias sujas, piadas sujas. Quando você visita um país estrangeiro, você joga jogos de PC sobre sua comida ou música interessante, mas como você se torna realmente amigável? Você troca uma pequena obscenidade.
Não consigo ficar com uma noite. Na minha cidade, Ljubljana, você pode dizer exatamente com quais mulheres eu dormi, porque me casei com elas.
Seria horrível dizer que amo Isis. Mas olhe para sua organização com sua identidade fluida pós-moderna. Existe uma tendência secreta emancipatória no Islã; Um maravilhoso historiador muçulmano da filosofia desenvolveu uma alegação de que Aquino interpretou mal Aristóteles sob a influência de poetas islâmicos como Avicena, que abriu o caminho para a modernidade, os direitos dos homossexuais e assim por diante.
Meus pais não eram rigorosos, mas eles eram paternalistas. Eu não gostei deles. Os dois morreram no hospital durante a noite e, quando descobri pelo telefone na manhã seguinte, eu já estava atrasado no computador. Eu disse: “Está tudo cuidado? OK, obrigado ”, e continuei. Eu me senti totalmente frio - algo não funcionou lá. Eu não estou celebrando a mim mesmo por isso.
Hollywood sabe tudo. Está obcecado com distopias, como no Elysium ou nos Jogos Vorazes. Eu realmente acho que esse é um dos nossos futuros bastante possíveis. Os jovens de hoje devem se preparar para uma grande catástrofe, mas devem se envolver em lutas cotidianas bem pensadas e não escapar para o moralismo.
Escrever salvou minha vida. Anos atrás, por causa de alguns problemas de amor particulares, eu estava com um humor suicida por algumas semanas. Eu disse a mim mesmo: “Eu poderia me matar, mas tenho um texto para terminar. Primeiro eu vou terminar, então eu vou me matar.” Então houve outro texto, e assim por diante, e aqui eu ainda estou.
Texto traduzido do site: My heart will go on
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